Após seis meses monitorando mais de 100 audiências de custódia virtuais em dois estados do Brasil, gostaria de compartilhar algumas das nossas impressões iniciais sobre esta modalidade de audiência criminal. Enquanto damos continuidade ao trabalho de consolidar e analisar mais aprofundadamente os dados coletados, algumas constatações já permitem indicar tanto desdobramentos positivos quanto tendências preocupantes em relação à proteção de salvaguardas processuais a serem respeitadas nas primeiras horas após uma prisão.
As audiências de custódia foram inicialmente estabelecidas no Brasil após decisão do Supremo Tribunal Federal em 2015 e hoje estão previstas no Código de Processo Penal do país. Estas audiências permitem que juízes ouçam a pessoa custodiada e as manifestações representações legais do Ministério Público e da defesa técnica antes de decidir se determinada detenção ocorreu de forma legal e se há necessidade de manter a pessoa em prisão preventiva. É importante ressaltar que as audiências de custódia também oferecem ao juiz a oportunidade de detectar, registrar e responder a alegações de tortura e maus-tratos que tenham ocorrido durante as primeiras horas de detenção.
Se por um lado a promulgação da Lei nº 13.964, em 2019, consagrou a proibição explícita do uso de videoconferência para a realização de audiências de custódia, a declaração oficial de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional no Brasil em fevereiro de 2020 levou a uma mudança radical e em direção oposta no cenário da justiça no país. Em resposta à pandemia de COVID-19, houve uma rápida adoção da tecnologia digital nos tribunais brasileiros, ao mesmo tempo em que resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) prescreveram o uso temporário de audiências virtuais na justiça criminal, inclusive para as audiências de custódia, mediante diretrizes específicas acerca deste tipo de audiência.
Como parte do trabalho da APT no Brasil, tenho monitorado audiências de custódia virtuais em Cuiabá (MT) e Maceió (AL). Representantes dos dois tribunais de justiça estaduais têm se mostrado interessados em conhecer e refletir sobre dados que comparam audiências de custódia presenciais e virtuais nessas localidades. Nesse sentido, cabe registrar que a pesquisa de campo tem sido possível apenas em razão da cooperação dos juízes coordenadores das audiências de custódia em ambos os tribunais, pelo que registramos o nosso agradecimento.
O acompanhamento das audiências virtuais foi iniciado em janeiro de 2022 e junto com Sylvia Dias, assessora jurídica sênior e representante da APT no Brasil, monitoramos 59 audiências em Cuiabá e 51 em Maceió.
Comparando resultados obtidos a partir da pesquisa de campo feita em 2018 sobre audiências de custódia presenciais com os resultados das audiências virtuais de 2022, houve algumas mudanças positivas. Por exemplo, mais juízes passaram a perguntar sobre a ocorrência de maus-tratos durante as primeiras horas de detenção e tem se verificado uma significativa ausência de agentes de segurança acompanhando as pessoas custodiadas durante as audiências. Este progresso é bem-vindo e vai ao cerne das principais necessidades de melhoria das condições da oitiva e proteção de salvaguardas processuais identificadas anteriormente.
Contudo, o monitoramento revelou principalmente deficiências na proteção de salvaguardas durante a realização de audiências de custódia virtuais. Estas falhas incluem, por exemplo, uma quantidade muito limitada de realização de exames de corpo de delito antes das audiências (exame ad cautelam), um número maior de pessoas custodiadas sendo apresentadas algemadas ou submetidas a outros instrumentos de contenção, e a ausência de uma apresentação adequada das audiências por parte dos juízes, de forma a esclarecer direitos, procedimentos e possíveis resultados processuais para as pessoas custodiadas.
Também observamos problemas graves na implementação dos procedimentos digitais. Por exemplo, as plataformas online utilizadas pelo Judiciário não ofereciam um canal privativo entre a defesa legal e a pessoa custodiada durante a audiência, mas somente antes do seu início. Ainda, devido à forma como as câmeras estavam instaladas, é difícil dizer em que medida os agentes de segurança podiam ouvir as audiências ou se as pessoas custodiadas haviam sofrido alguma forma de assédio ou intimidação. Além disso, em casos em que as pessoas custodiadas alegavam haver sofrido tortura ou maus-tratos, os juízes sistematicamente deixaram de solicitar que elas mostrassem seus ferimentos através das câmeras, bem como não fizeram uso da prerrogativa de substituir a audiência virtual por audiência presencial nesses casos. Todos estes achados revelam contrariedade a diretrizes específicas estabelecidas pelo CNJ.
Os achados iniciais sugerem que, apesar de alguns aspectos positivos, os procedimentos empregados para as audiências de custódia virtuais prejudicaram salvaguardas cruciais estabelecidas em lei, enquanto a falta de treinamento e outras medidas voltadas à implementação do formato virtual contribuíram para que as audiências não atingissem seus principais objetivos. Em que pese a análise da APT estar voltada à avaliação de práticas a partir de uma ampla amostra de audiências de custódia, situações específicas também nos fazem soar o alarme. Isto ocorreu, por exemplo, quando um juiz permaneceu com o seu vídeo bloqueado durante toda uma audiência, em diversos casos em que as pessoas custodiadas não foram trazidas de volta à sala virtual para ouvir a decisão que lhes dizia respeito, e quando pessoas custodiadas tentaram mostrar os ferimentos que supostamente sofreram na detenção, mas a má qualidade do vídeo impediu qualquer possibilidade de uma identificação adequada das marcas.
É importante considerar que, em determinados contextos, a digitalização pode desempenhar um papel relevante para melhorar o acesso à justiça. Ouvimos de juízes como em cidades pequenas ou distantes no Brasil profundo, com infraestruturas policiais e judiciais insuficientes, existe agora a possibilidade de se realizarem audiências de custódia usando a tecnologia de videoconferência. Nesse sentido, seria importante que situações específicas como estas sejam consideradas em resoluções futuras sobre o assunto, garantindo o acesso à justiça.
Ainda assim, minha impressão é que as audiências de custódia perdem eficácia com as barreiras criadas pelo formato remoto. Há deficiências relativas à formalidade das audiências, em assegurar a plena atenção dos participantes, em se construir um relacionamento e ambiente de confiança com as pessoas custodiadas e, assim, proporcionar em sua completude um primeiro contato com as autoridades judiciais durante o momento mais propenso a violações: as primeiras horas. Apesar do esforço genuíno das autoridades, o ambiente virtual frequentemente distorce e mina elementos-chave potencializados nas audiências de custódia presenciais. Há também um obstáculo de legalidade, já que o Código de Processo Penal veta o formato virtual nas audiências de custódia e mesmo a autorização do CNJ para o seu uso está vinculada à decretação de uma Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional, já encerrada no Brasil.
As audiências de custódia presenciais proporcionam um enquadramento mais robusto e eficaz para lidar com a reconhecida vulnerabilidade das pessoas privadas de liberdade durante as primeiras horas de detenção. Elas também oferecem a juízes e a outros atores do sistema de justiça criminal uma oportunidade qualificada de obter uma compreensão integral de cada detenção e de detectar e registraras alegações de tortura ou maus-tratos. Conforme reconhecido pela legislação processual penal, as audiências de custódia possuem um papel muito específico no sistema de justiça criminal. Portanto, após um período de grandes desafios e mudanças normativas no Brasil, é importante que os aprendizados advindos deste período sejam utilizados para fortalecer práticas relativas às audiências de custódia, ao invés de servirem como justificativa para substituir ou diluir o que já vinha instituído.
Com os dados coletados pela APT será possível contribuir para uma avaliação mais robusta das práticas, riscos e aprendizados sobre as audiências de custódia virtuais no Brasil. Nos próximos meses, lançaremos fichas comparativas sobre as audiências presenciais e virtuais, apresentando dados e recomendações baseadas em nossas pesquisas de campo em Cuiabá e Maceió. Dessa forma, esperamos poder dar continuidade às discussões sobre este assunto nos próximos meses.
Fabio de Almeida Cascardo é consultor jurídico da APT no Brasil e ex-membro do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro.