A visita do Mecanismo de Especialistas da ONU para Promoção de Justiça e Igualdade Racial na Aplicação da Lei (EMLER) ao Brasil, ocorrida entre 27 de novembro e 8 de dezembro, apontou desafios arraigados no sistema de justiça criminal nas forças policiais do país, exigindo uma “mudança transformadora”. Do contrário, as pessoas negras, que representam mais de metade da população (56,1% nos dados do IBGE), continuarão a ter negados muitos dos seus direitos humanos e a enfrentar discriminação sistemática e contínua, inclusive por parte daqueles responsáveis por aplicar a lei.
As estatísticas corroboram o cenário sombrio. As polícias do Brasil estão entre as mais violentas e letais do mundo. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2021 mais de 6.133 pessoas foram mortas pelas mãos da polícia, tendo as pessoas negras uma incidência 2,6 vezes maior enquanto alvos de assassinados cometidos por agentes estatais. De maio a novembro de 2023, mais de 17 mil casos de abuso policial foram denunciados por pessoas detidas durante audiências de custódia. No Rio de Janeiro, oito em cada dez pessoas a relatar agressão policial durante abordagens eram negras. Na Bahia, os defensores públicos documentaram que 98% das pessoas detidas pela polícia eram afrodescendentes. Nas prisões do país, pessoas negras representam mais de dois terços (67,8%) dos presos, bem acima da população afrodescendente segundo o IBGE, como apontado acima.
Estas são apenas algumas das graves consequências do que Silvio Almeida, académico e atual Ministro dos Direitos Humanos, descreve como racismo estrutural. Em seu livro sobre o tema, Almeida observa que “as maiores desgraças produzidas pelo racismo foram feitas sob o abrigo da legalidade”. Explica, ainda, que a raça é uma construção sociopolítica, enfatizando que o “sistema de justiça é um dos mecanismos mais eficientes na criação e reprodução da raça e de seus múltiplos significados”. Neste sentido, “o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e mesmo familiares”, afetando não a exceção, mas a maior parte das interações individuais e dos procedimentos institucionais.
Sob esse contexto, merece destaque o convite feito pelo Estado brasileiro para uma visita oficial do EMLER. Com um mandato de três anos, conforme a Resolução 47/21 do Conselho dos Direitos Humanos da ONU, o órgão tem o amplo objetivo de examinar o racismo por parte das autoridades, instituições e marco jurídico do Estado, o uso excessivo da força e outras violações de direitos humanos, e a causas enraizadas do racismo na aplicação da lei e no sistema de justiça criminal, dentre outros. Se o objetivo é estabelecer uma visão abrangente e global sobre esta questão, não há dúvida de que a experiência do Brasil merece ser considerada pelo EMLER.
Denunciando as profundas e crônicas injustiças raciais enfrentadas por pessoas negras no Brasil, 141 organizações internacionais e brasileiras assinaram uma carta aberta ao Ministério das Relações Exteriores solicitando que os especialistas da ONU fossem convidados para uma missão de apuração ao país. Com isso, o Brasil se tornou até o momento o único país da América Latina a receber uma missão do EMLER.
A representante da Associação para a Prevenção da Tortura no Brasil (APT), Sylvia Dias, participou de reunião com a delegação do órgão e 15 organizações da sociedade civil no Rio de Janeiro, levando temas ligados às iniciativas da APT.
"A implementação efetiva de audiências de custódia pelos tribunais dentro de 24 horas após cada detenção, o papel do Ministério Público em seu mandato constitucional para exercer a supervisão da atuação policial, e a adopção pelo sistema de justiça criminal dos Princípios sobre Entrevistas Eficazes para Investigações e Coleta de Informações - também conhecidos como Princípios Méndez - são peças fundamentais ao se abordar a prevenção da tortura, a discriminação e a supervisão policial no Brasil", destacou Dias à delegação EMLER.
“Os Princípios Méndez trazem um novo paradigma para que as práticas institucionais de entrevista de pessoas detidas adotem parâmetros baseados na obtenção de consentimento, confiança e informação”, acrescentou Dias. “Isso representaria uma transformação das atuais práticas em procedimentos criminais, nas quais se desconsideram as declarações feitas pelas pessoas detidas e onde as autoridades tendem a decidir tão-somente com base na narrativa feita por policiais."
A delegação do EMLER também visitou Brasília, Salvador, Fortaleza e São Paulo, reunindo-se com representantes do Estado e da sociedade civil, incluindo vítimas e seus familiares. O comunicado de imprensa emitido no final da missão chama a atenção para a forma como o perfilamento e a discriminação raciais prejudicam o acesso à justiça no Brasil.
“Apelamos por uma mudança transformadora em todo o sistema. O Governo Brasileiro deve reavaliar os procedimentos atuais de investigação da má conduta policial, desmantelar as desigualdades raciais sistêmicas e investir na abordagem direta das disparidades históricas que residem na raiz dessas questões”, disse o Sr. Juan Méndez, chefe da delegação do EMLER. “É imperativo que seja renovado um compromisso financeiro e estrutural para a implementação das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos relativas à ação policial nas favelas. Tratar das questões que afetam pessoas afrodescendentes de forma específica é indispensável para demonstrar uma dedicação sincera à solução desses desafios antigos” – continuou.
Testemunhos comoventes de pessoas que sofreram graves violências cometidas pela polícia em favelas e periferias do Brasil, combinados com injustiças históricas e não resolvidas, fornecem ao EMLER evidências robustas da atual falta de justiça e igualdade racial. A avaliação do órgão internacional oferece ao Brasil a oportunidade de responder a esta situação, incorporando futuras recomendações e iniciando um processo de análise das causas profundas do racismo que permeia a sociedade e as instituições brasileiras. Para isso, enfrentar os abusos sem deixar de lado a lente do racismo estrutural e desenvolver práticas e leis antirracistas são medidas essenciais para promover a justiça racial e cumprir o princípio de não discriminação, estabelecido no direito internacional e cujo respeito exigirá do sistema de justiça e dos agentes da lei a mudança transformadora defendida pelo EMLER.