A APT acaba de publicar dois relatórios detalhados sobre as audiências de custódia e a implementação de salvaguardas processuais nas primeiras horas de detenção no Brasil.
Abrangendo práticas e decisões judiciais em Maceió, Alagoas, e em Cuiabá, Mato Grosso, a Série de Cadernos Informativos sobre Audiências de Custódia avaliam a dinâmica das audiências, as decisões judiciais e o respeito a salvaguardas individuais em cada capital em 2018 e 2022, avaliando-as à luz de parâmetros legais e técnicos sobre prevenção, documentação e investigação da tortura. As deficiências e limitações verificadas na condução de audiências virtuais também foram abordadas.
Desde o início da pandemia de Covid-19 o fenômeno de virtualização da justiça ganhou força no Brasil. Apesar da proibição formal de audiências de custódia virtuais pelo art. 3-B, §1º, do Código de Processo Penal, tribunais de todo o país passaram a adotá-la sob a autorização temporária do Conselho Nacional de Justiça. Em 2022, no período em que ocorreu o monitoramento, os tribunais locais de Maceió (região Nordeste) e Cuiabá (região Centro-Oeste) ainda seguiam essa tendência, problematizada pela APT e por órgãos internacionais de direitos humanos.
As alegações de tortura ou maus tratos mantiveram-se em níveis alarmantes em ambas as capitais. Em Cuiabá, MT, ocorreram em 27% dos casos acompanhados em 2018 e em 55% dos que foram monitorados de 2022. Em Maceió, AL, foram 33% em 2018 e 30% em 2022.
Estes números denotam uma violência policial persistente e confirmam a importância de se assegurar a apresentação de todas as pessoas detidas às autoridades judiciais, de maneira a possibilitar a verificação de sua integridade pessoal e da legalidade da detenção.
Nos relatórios a APT traça diferentes recomendações para impulsionar políticas de prevenção no seio das agências do sistema de justiça criminal, como a reunião e publicação de dados, identificação de padrões de abusos para subsidiar políticas públicas, diálogos de alto nível com autoridades responsáveis e aplicação da Regra de Exclusão pelas autoridades judiciais, de maneira a invalidar e remover dos processos todas as informações ou provas obtidas através de meios ilegais.
Adaptar o monitoramento às diferentes modalidades de audiências de custódia após a virtualização desses procedimentos no Brasil e o acompanhamento em primeira mão de mais de 200 audiências de custódia permitiu à APT identificar tendências e desenhar recomendações visando melhorar as práticas atuais das agências de justiça criminal e das autoridades do Estado nas primeiras horas de detenção.
A apresentação inicial da audiência feita por juízes, por exemplo, é fundamental para estabelecer um relacionamento com as pessoas custodiadas, enquadrar a atual acusação, explicar os procedimentos legais em curso e verificar se as salvaguardas individuais foram respeitadas desde o momento da detenção - como o direito à assistência jurídica, o direito ao silêncio, o uso excepcional de instrumentos de contenção e a proibição da tortura e dos maus tratos. Visando uma padronização desta etapa das audiências, a APT recomendou que os tribunais emitam orientações aos juízes na direção do que estabelecem diretrizes técnicas nacionais e internacionais, como os Princípios sobre Entrevistas Eficazes para Investigação e Coleta de Informação (Princípios Méndez).
A APT observou uma tendência positiva em relação à implementação da Regra de Exclusão, nos termos do art. 15 da Convenção Internacional Contra a Tortura, por juízes de Mato Grosso, onde abusos policiais foram reportados de forma consistente e constante. Em 17% dos casos observados em 2022 os juízes libertaram as pessoas custodiadas com base em denúncias de buscas domiciliárias ilegais sem mandado judicial ou de violência contra a pessoa detida ou seus familiares. Decisões do tipo dão efeito à proibição absoluta da tortura e são um instrumento fundamental nas mãos dos juízes para que as audiências de custódia cumpram o seu papel como um pilar para a prevenção da tortura no sistema de justiça criminal, crucial para combater abusos policiais no Brasil.
Entrevistas interessadas visando à efetiva detecção e documentação de supostas torturas foram um aspecto positivo mapeado em Alagoas. Esses questionamentos foram protagonizados principalmente pela promotora designada na maior parte das audiências de custódia ocorridas em Maceió, conduzindo perguntas abertas sobre as circunstâncias e a dinâmica dos fatos.
Balizas técnicas como o Protocolo de Istambul da ONU e os Princípios Méndez são de grande ajuda para estruturar entrevistas produtivas e baseadas em rapport –consentimento, empatia e dignidade - durante as audiências de custódia, recolhendo informações sobre perpetradores, testemunhas, cenas de crime, lesões e outras provas potenciais.
Os relatórios apresentam e discutem outras práticas boas ou preocupantes, mapeadas a partir da observação de 217 audiências. Elas compreendem o uso de algemas e grilhões nos pés das pessoas custodiadas, garantia de conversas reservadas com a assistência jurídica, realização oportuna de exames ad cautelam, efetiva assistência psicossocial, condições de detenção na carceragem e acesso de familiares às audiências, por exemplo.
A APT gostaria de agradecer aos juízes de Maceió e Cuiabá por concederem aos pesquisadores o acesso a audiências, réus, autoridades e cópias dos processos, e espera que os relatórios permitam às autoridades do sistema de justiça criminal aperfeiçoarem o seu trabalho decisivo para a garantia do devido processo legal e dos direitos humanos das pessoas privadas de liberdade. A APT deseja, ainda, que os estudos venham a complementar o conjunto de pesquisas que as organizações da sociedade civil brasileira vêm desenvolvendo para uma maior transparência do Judiciário e o fortalecimento das iniciativas antitortura nas primeiras horas de detenção.
Veja o relatório sobre Maceió, Alagoas, no link (disponível apenas em português): https://www.apt.ch/pt/centro-de-conhecimento/publicacoes/serie-de-cadernos-informativos-sobre-audiencias-de-custodia-0
Veja o relatório sobre Cuiabá, Mato Grosso, no link (disponível apenas em português): https://www.apt.ch/pt/centro-de-conhecimento/publicacoes/serie-de-cadernos-informativos-sobre-audiencias-de-custodia