Os últimos dois anos foram particularmente inovadores quanto ao avanço e mobilização para a criação de novos mecanismos estaduais de prevenção à tortura no Brasil. Após alguns anos de estagnação, os processos em âmbito estadual têm ganhado novo impulso resultando na criação de novos mecanismos para a prevenção da tortura.

Os mecanismos estaduais de prevenção à tortura (MEPCTs) são fundamentais para permitir uma abordagem preventiva eficaz para inibir violações de direitos humanos e proteger a dignidade das pessoas em risco.  O impacto e a eficácia do sistema nacional previsto na legislação federal dependem significativamente do estabelecimento de uma rede de mecanismos preventivos na esfera dos estados.  Recentemente, um novo momentum emergiu. Dois novos mecanismos foram instituídos nos Estados do AcreSergipe. Após muitos anos de forte mobilização por parte das organizações de base e do Mecanismo Nacional de Prevenção (MNP), o Estado do Ceará aprovou sua legislação estabelecendo seu próprio mecanismo. Os membros já foram selecionados e esse novo mecanismo deve começar a funcionar em breve. No Estado de Tocantins, no centro-oeste, após intenso advocacy por parte dos atores locais e em parceria com o MNP e a APT, foram garantidos os recursos para a criação deste novo órgão de monitoramento.  

Esses acontecimentos indicam que a mobilização continua forte no Brasil. As organizações da sociedade civil continuam firmes em seus esforços para garantir um sistema nacional e para pleitear firmemente, perante as autoridades estaduais, a criação dos mecanismos de prevenção em conformidade com o OPCAT. O Mecanismo Nacional de Prevenção à Tortura também tem atuado como uma figura protagonista nos diálogos estaduais. Além disso, o Conselho Nacional de Direitos Humanos em parceria com a Rede Nacional de Conselhos de Direitos Humanos divulgou uma recomendação dirigida às gestões estaduais para que implementem, os Comitês e Mecanismos Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura nas Unidades da Federação em estrita conformidade com o OPCAT. 

Entretanto, alguns dos avanços alcançados foram o resultado de se levar a demanda aos tribunais. O Ministério Público Federal, e sua Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), vem liderando ações judiciais visando a implementação dos mecanismos estaduais e, desta forma, fazer valer a obrigação dos estados de estabelecer seus próprios órgãos de monitoramento, estipulada no OPCAT. 

No Estado do Acre, por exemplo, o MEPCT foi criado após a assinatura de um termo de ajustamento de conduta por meio do qual o Governo do Acre se comprometeu formalmente a implementar o órgão.  Em Sergipe, o MEPCT foi designado após decisão liminar proferida pela Justiça Estadual a pedido do Ministério Público Federal. No Estado do Amazonas, uma decisão da Justiça Federal determinou que o Governo implementasse uma LPM em 90 dias. Esses exemplos demonstram o impacto da ação judicial e da advocacia.

Procedimentos judiciais semelhantes foram realizados no Estado de São Paulo -  território onde está concentrado aproximadamente 1/3 da população carcerária do país. São Paulo tem aproximadamente 198.000 pessoas privadas de liberdade em estabelecimentos penais. Em 2018, após anos de advocacy por parte de uma coalizão de atores estatais e da sociedade civil, um projeto de lei foi aprovado na ALESP para criar um MEPCT com 11 membros. Essa foi uma grande vitória para a sociedade civil que, por muitos anos, que se empenhou intensamente pela implantação de um órgão de monitoramento no estado. Entretanto, os motivos para comemorar não duraram muito tempo. Poucos dias depois, o governador vetou integralmente o projeto de lei, um revés que se mantém até hoje.

Este ano, após falta de progresso no diálogo com os atores do poder público, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública ajuizaram uma ação civil pública para obrigar o Estado a criar seu próprio mecanismo estadual em conformidade com a legislação nacional, os dispositivos do OPCAT e as recomendações internacionais para o Brasil. Após um resultado inicial positivo, com uma decisão liminar ordenando o Estado de São Paulo a apresentar um plano de implementação de prevenção à tortura no território paulista,  a decisão original foi suspensa após um recurso do Estado e o desfecho final ainda se encontra pendente de julgamento. Uma coalizão de organizações da sociedade civil, da qual a APT faz parte, mantém seus esforços de mobilização.

Alinhado a esses desdobramentos, um novo conjunto de diretrizes também está em vigor para auxiliar os atores estaduais em seus esforços de implementação de mecanismos estaduais. A nova Recomendação emitida pelo Comitê Nacional para Prevenção da Tortura aborda questões estratégicas, como critérios para a seleção dos peritos e peritas e estrutura institucional, baseando-se nas melhores práticas e lições aprendidas a partir da experiência de mecanismos existentes.  

A APT também lançou uma página online com o objetivo de fornecer ferramentas técnicas e orientações para apoiar os atores locais em seus esforços para estabelecer os mecanismos de prevenção à tortura. Nossa página de recursos sistematiza a legislação nacional existente, as normas e as diretrizes relacionadas, fornece respostas a perguntas frequentes sobre orçamento, estrutura de trabalho e composição da equipe e exibe um mapa do estado atual de implementação do OPCAT no Brasil. 

A expansão e a consolidação do sistema nacional de prevenção da tortura continuam sendo um desafio. Até o momento, apenas 6 estados estabeleceram seus mecanismos. E, dentre estes, muitos ainda funcionam com condições de trabalho precárias e recursos humanos insuficientes.

Além disso, a exoneração de todos os peritos e peritas que compunham o MEPCT do Estado de Pernambuco representou um grande retrocesso em uma política de prevenção de longa data no estado. Isso é particularmente preocupante ao se tratar de em um estado que foi objeto de medidas ordenadas pela Corte Interamericana devido a graves violações de direitos humanos em seu sistema prisional.

Ainda no ano passado, o Comitê das Nações Unidas contra a Tortura emitiu uma recomendação contundente instando o Brasil a tomar “todas as medidas necessárias para estabelecer prontamente uma rede de mecanismos preventivos em todos os estados e garanta que cada um dos órgãos da rede tenha os recursos e a independência funcional e operacional necessários para cumprir seu mandato preventivo de acordo com o Protocolo Facultativo da Convenção, incluindo o acesso a todos os locais de privação de liberdade com base em suas próprias prioridades".

Apesar dos desafios, os esforços da sociedade civil, do Mecanismo Nacional de Prevenção e de atores judiciais continuam impulsionando e conquistando avanços. O recente impulso no estabelecimento de mecanismos estaduais no Brasil representa um avanço significativo que precisa ganhar ainda mais força. O recente anúncio da criação de uma rede de mecanismos preventivos na América Latina poderá se tornar um apoio adicional neste constante impulso de se consolidar a política de prevenção à tortura no Brasil.   

News Thursday, July 11, 2024

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