Dados sobre a operacionalização das audiências de custódia no Brasil divulgados neste 24 de agosto pela plataforma Observa Custódia lançam luz sobre tendências e preocupações no acesso à justiça e na proteção de salvaguardas individuais em um momento particularmente vulnerável a ocorrência de abusos contra pessoas privadas de liberdade: as primeiras horas após a detenção.
Na divulgação de dados lançada hoje a Observa Custódia ampliou significativamente a sua abrangência territorial, alcançando 71 unidades de audiências de custódia e cobrindo todas as unidades federativas do país. Em 2022, o levantamento se restringiu às audiências de custódia ocorridas nas 27 capitais brasileiras, enquanto em 2023 o escopo da coleta de dados se expandiu para comarcas além das capitais.
Ao mesmo tempo, a plataforma ganhou novas ferramentas, permitindo ao usuário/a comparar as informações obtidas sobre as audiências de custódia em 2022 e 2023. O painel segue permitindo, ainda, a visualização e o processamento dos dados em escala nacional, por região, por estado, por capitais ou por unidade de audiência de custódia. Tal disposição facilita a leitura dos diferentes contextos em que são implementadas as audiências e, por conseguinte, alavanca o trabalho de incidência que a sociedade e as autoridades estatais podem fazer pelo seu aprimoramento, valendo-se das informações obtidas na plataforma.
O Brasil tem vivido um período-chave da consolidação das audiências de custódia, sobretudo em razão da expectativa de retorno às audiências presenciais após a difusão do uso de plataformas de videoconferência para esta finalidade durante a pandemia de Covid-19. Cumpre salientar que a obrigatoriedade de que audiências de custódia, especificamente, se deem presencialmente tem respaldo no art. 3-B, §1º, do Código de Processo Penal brasileiro, nas resoluções temáticas do Conselho Nacional de Justiça, no art. 9.3 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e em declaração do Comitê Contra a Tortura das Nações Unidas, em suas conclusões finais no ciclo mais recente de revisão das obrigações do Estado brasileiro1.
Contudo, o painel de dados da Observa Custódia indica uma tendência diferente e na contramão do direito da pessoa que está sob custódia estatal a ser ouvida e ter a sua situação processual reavalia ainda nas primeiras horas após a detenção, em audiência presencial com autoridades judiciais. Isso porque, em que pese a redução, em 2023, das comarcas que realizam unicamente audiências de custódia por videoconferência (em 2022 eram 55% e em 2023 são 31%), o que se verifica na prática atualmente é uma flexibilização para que juízes e juízas decidam entre presidirem audiências de custódia presenciais ou virtuais (em 2022, 14% das unidades de audiências de custódia adotavam esse modelo misto, que em 2023 subiu para 37% do total), ao arrepio do mandamento legal. Portanto, a pessoa custodiada ainda não conta com uma garantia por parte do Estado de que será ouvida e terá sua detenção avaliada presencialmente.
Outros indicadores também merecem atenção nesse segundo levantamento. Constatou-se, por exemplo, que em 31% das unidades de audiências de custódia a pessoa apresentada às autoridades pode ser removida da sala de audiência durante o rito judicial. Ou seja, sem participar ou ouvir tudo o que lhe diz respeito no ato processual, inclusive a decisão sobre a manutenção de sua detenção e eventuais medidas relativas a alegações de tortura ou maus tratos, bem como de proteção da sua integridade pessoal. Tal violação aos princípios da ampla defesa e da transparência dos atos processuais foi mapeada em 3 localidades onde a pessoa custodiada é sistematicamente retirada da sala de audiência antes do término da audiência, enquanto em outras 19 tal prática também ocorre, porém não de forma sistemática.
Ainda em relação às alegações de tortura ou maus tratos, a expansão da análise para as comarcas de interior revelou uma melhora no índice de exames periciais (ad cautelam) que chegam a tempo de serem analisados durante a audiência de custódia, o que atualmente ocorre em 70% das unidades de audiências de custódia – em 2022 isso se dava em 55% das unidades localizadas nas capitais brasileiras. Se faz urgente, no entanto, corrigir a situação em 12% das unidades de custódia onde o exame pericial ad cautelam não é sequer realizado antes da apresentação perante a autoridade judicial.
Ao pautar o debate público e oferecer insumos qualificados para atores e atrizes com interesse no tema, a Associação para a Prevenção da Tortura (APT) e demais parceiros renovam o seu compromisso antitortura e permitem o aprimoramento de práticas judiciais, alinhadas à proteção e à promoção dos direitos humanos das pessoas privadas de liberdade.
Sobre a Observa Custódia
Administrada pela APT, a Observa Custódia visa oferecer maior transparência e accountability ao sistema de justiça criminal, disponibilizando informação e ferramentas para o monitoramento cidadão sobre as práticas judiciais. Esta é a segunda divulgação de dados feita pela plataforma, que sistematiza informações sobre o funcionamento das audiências de custódia conforme dez categorias de análise, que espelham direitos e serviços que devem ser observados. Dentre eles estão, por exemplo, a realização de audiências presenciais, de exames periciais prévios e de atendimento médico e psicossocial à pessoa custodiada, sempre tendo por base o que estabelece a legislação brasileira e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
O desenvolvimento da Observa Custódia conta com o apoio do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Conectas Direitos Humanos, Asa Branca Criminologia, Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP), Instituto Pro Bono, Instituto de Estudos da Religião (Iser), Justiça Global, Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, Rede Justiça Criminal, Núcleo Especializado da Situação Carcerário da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e Núcleo de Audiências de Custódia Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.
Já o levantamento de dados é feito em parceria com o Conselho Nacional de Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege), obtendo a contribuição de defensoras e defensores públicos que atuam junto às audiências de custódia em diversas localidades Brasil a fora.
A Observa Custódia é, portanto, resultado de uma visão comum entre sociedade civil e defensorias públicas acerca da importância das audiências de custódia e da qualificação das práticas judiciais com base na transparência e nos parâmetros legais sobre direitos humanos.
MAIS
Veja também as análises da Folha de São Paulo sobre a segunda rodada de dados da Observa Custódia no link.