Em audiência pública sobre o chamado Plano Nacional Pena Justa, ocorrida em 30 de abril de 2024, a APT apresentou seis eixos de ações estratégicas para complementar a proposta do plano determinado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em relação ao sistema prisional brasileiro. A proposta foi desenhada conforme uma Matriz de Ações pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), anfitriões do encontro. O plano e as consultas públicas são instrumentos essenciais para dar efetividade uma das principais conclusões da Suprema Corte, segundo a qual o “estado de coisas [inconstitucional nas prisões] demanda a atuação cooperativa das diversas autoridades, instituições e comunidade para a construção de uma solução satisfatória”.

A declaração de um Estado de Coisas Inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro pelo STF representa um marco no reconhecimento oficial acerca das “violações massivas de direito humanos nas unidades prisionais” e da “falência estrutural na atuação estatal” a respeito. A decisão recente no âmbito da Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347, ajuizada ainda em 2015, determina que as autoridades estatais elaborem um plano nacional voltado para o controle da superlotação carcerária, da má qualidade das vagas existentes e da entrada e saída das pessoas presas.

Com mais de 700.000 pessoas presas, o Brasil ainda figura como a terceira maior população prisional do mundo, as quais funcionam como “masmorras medievais”, nas palavras de ao menos dois Ministros da Justiça, e são alvo de reiteradas preocupações e recomendações dos principais organismos que compõem os sistemas universal e interamericano de proteção de direitos humanos. O escopo da ADPF 347 permitiu ao tribunal constitucional analisar a política prisional em sua complexidade, abrangendo a situação nos diferentes estados e recolhendo informações junto a autoridades e organizações da sociedade civil sobre o tratamento dispensado às pessoas presas e eventuais soluções para o cenário que se apresenta. 

As contribuições da APT se voltaram, em especial, para a implementação efetiva de tratados e decisões internacionais relativas às pessoas privadas de liberdade, incluindo o OPCAT e o status jurídico dos Mecanismos de Prevenção à Tortura, o controle das vagas (eixo 1 da Matriz de Ações), a qualidade da ambiência e estrutura prisionais (eixo 2 da Matriz de Ações) e as políticas mitigatórias e de não repetição (eixo 4 da Matriz de Ações), previstas na proposta oficial. Em linhas gerais, as considerações e recomendações da APT abordaram ações conforme segue:

 

  1. Mecanismos de Prevenção à Tortura: Priorizar a política pública de Mecanismos Preventivos no Brasil, de modo que o Plano detalhe medidas para a criação, operacionalização e financiamento do Mecanismo Nacional e de Mecanismos Estaduais nas 27 unidades federativas.  
  2. Audiências de Custódia: Assegurar o comparecimento presencial das pessoas custodiadas; um ambiente judicial, evitando entornos policiais ou penitenciários; o atendimento psicossocial de todas as pessoas apresentadas; e a publicização, em plataforma de dados, dos resultados processuais, incluindo decisões pelo relaxamento da prisão, hoje não contempladas no painel de estatísticas do CNJ.
  3. Cômputo em dobro da pena sob condições desumanas: Incluir a regulação, parametrização e ampliação do instituto de redução de dois dias no tempo de pena para cada dia cumprido sob condições antijurídicas de detenção, em linha com medidas provisórias emanadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e precedentes de tribunais brasileiros. 
  4. Racismo estrutural: Desenhar no Plano uma abordagem transversal de reconhecimento e enfrentamento ao racismo estrutural contra pessoas negras e indígenas no Brasil. Tais medidas devem seguir a abordagem holística das políticas de justiça de transição, conforme defendido pelo Alto Comissariado para os Direitos Humanos e pelo Mecanismo Especializado Independente para Promover a Justiça Racial e a Igualdade na Aplicação da Lei, ambos das Nações Unidas. 
  5. Planos e fluxos em alegações torturas e óbitos de pessoas presas: Alinhar entre atores do sistema de justiça e penitenciários fluxos para a investigar, resguardar a cadeia de custódia, suspender agentes suspeitos, proteger vítimas, responsabilizar autores (criminal, civil e administrativamente) e divulgar banco dados sobre torturas e óbitos no sistema penitenciário, seguindo diretrizes como os Protocolos de Istambul e de Minnesota.
  6. Organismos e parâmetros internacionais: Comprometer-se em manter convite permanente para visitas oficiais de órgãos de tratado, procedimentos especiais e órgãos principais da ONU e da OEA; respeitar procedimentos e prazos junto a esses órgãos; designar órgão estatal para o monitoramento do cumprimento de manifestações provenientes deles; e rechaçar o desrespeito a precedentes de cortes internacionais

Uma variedade de temas essenciais para a o melhoramento e supervisão das condições de detenção estão enumerados na Matriz do Plano. Um deles diz respeito à qualificação das inspeções judiciais no Brasil, que tem grande poder de contribuir diretamente na qualificação da prestação jurisdicional e sensibilização de juízes para a realidade das pessoas presas. Esta primeira versão da Matriz de Ações é um documento promissor em seu conteúdo e potencial de alcançar a pactuação multinível vislumbrada pelo STF. Representantes das 50 organizações sociais que participaram da audiência pública mostram apoio, em alguma medida, à proposta, ainda que adicionando ao menos 152 novas ações ao Plano. Contudo, deve ser salientado que a versão apresentada pelo CNJ e MJSP ainda não indicava as autoridades responsáveis por cada ação e o prazo de implementação delas. Nos próximos dias caberá ao STF avaliar a validação e decidir sobre o cronograma de implementação.

Na medida em que os planos nacional e estaduais avancem, espera-se que outras etapas e instrumentos participação social e transparência sejam assegurados. Por ora, o reconhecimento oficial e disposições feitas pela Suprema Corte oferecem uma nova dimensão jurídica para o debate relativo às pessoas privadas de liberdade e uma janela de oportunidade para mudanças nas práticas e normativas da justiça criminal – o que é fruto da histórica convicção e persistência da sociedade civil brasileira, em especial familiares e vítimas, em tornar concretos compromissos básicos constitucionais e humanitários.


News Monday, July 15, 2024

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