Relatos de atores do sistema de justiça criminal e de familiares de pessoas presas coletados pela APT e organizações parceiras, demonstram que as audiências de custódia realizadas por videoconferência obstruem a identificação e registro de sinais de tortura e maus-tratos por parte dos magistrados.
No vídeo apresentado em audiência pública perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em junho de 2021, eles enfatizaram como a comunicação, especialmente a comunicação não verbal, fica significativamente comprometida via vídeo, e como os ângulos da câmera podem afetar a forma como a informação prestada pela pessoa custodiada é recebida pelo magistrado(a).
Os atores do sistema justiça criminal também afirmaram que, com a videoconferência, as audiências de custódia acabam sendo realizadas em delegacias ou centros de detenção, na presença de policiais ou outros agentes de segurança, o que cria um ambiente intimidatório que inibe possíveis relatos de tortura ou maus-tratos.
A principal mensagem que a APT e organizações parceiras compartilharam com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) foi que, para serem eficazes, as audiências de custódia devem ser realizadas pessoalmente, perante um magistrado, em um ambiente do Poder Judiciário, assegurando-se que a pessoa custodiada seja removida do controle das forças policiais que efetuaram a prisão.
As audiências de controle da detenção (ou "audiências de custódia" ou "audiências iniciais"), realizadas nas 24 horas imediatamente seguintes ao ato de prisão de uma pessoa, constituem uma salvaguarda fundamental para se verificar a legalidade da prisão, prevenir contra a privação arbitrária da liberdade e investigar sinais ou alegações de tortura ou maus-tratos.
No entanto, a pandemia da COVID-19 levou à suspensão das audiências de custódia presenciais em muitos países da América Latina e a um crescente uso de ferramentas de videoconferência.
"Isso compromete o próprio propósito das audiências de custódia", disse Sylvia Dias, assessora jurídica sênior da APT e representante no Brasil.
"O uso de ferramentas virtuais prejudica a comunicação clara entre todas as partes e inibe a oportunidade de um relato em ambiente seguro,das circunstâncias da sua prisão", afirmou Sylvia Dias. "Além disso, retirar a pessoa detida do poder e do controle das forças de segurança é uma condição chave para reduzir o risco de tortura e outros maus-tratos.”
A APT e entidades parceiras da sociedade civil pediram à CIDH que examine os efeitos do atual uso generalizado da videoconferência nas audiências criminais na região, incluindo os efeitos prejudiciais que isso tem sobre o devido processo e os direitos humanos das pessoas presas. Além disso, as entidades solicitaram que a CIDH publique diretrizes regionais com parâmetros para a realização de audiências virtuais em processos penais, que incluam a proibição explícita do uso de plataformas digitais nas audiências de custódia.
Os órgãos internacionais de direitos humanos, incluindo o Comitê de Direitos Humanos da ONU e o Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária da ONU, já afirmaram que o comparecimento físico da pessoa custodiada perante uma autoridade judicial é um requisito essencial para a realização de audiências de controle da detenção.
Em sua intervenção em evento convocado pela APT e demais organizações peticionárias, em 5 de Outubro, Joel Hernández, Comissário da CIDH e Relator sobre Defensores e Defensoras de Direitos Humanos e Operadores de Justiça, insistiu sobre a necessidade de se diferenciar quando uma audiência pode ser realizada remotamente e quando a tecnologia digital não deve ser permitida.
"Em nossa opinião, as audiências iniciais, de controle ou de custódia trazem implicações sumamente críticas para a situação jurídica da pessoa custodiada e, frequentemente, o uso da audiência virtual não é o adequado. A condução destas audiências de forma virtual poderia levar à continuação de práticas de tortura, que não são denunciadas ao juiz e que não podem ser constatadas através de uma plataforma digital".
Joel Hernández, Comissário da CIDH e Relator sobre Defensores de Direitos Humanos e Operadores de Justiça.
Os e as palestrantes também observaram que as audiências presenciais podem ajudar a 'humanizar' o sistema de justiça criminal e permitir que juízes(as) e promotores(as) de justiça vejam um rosto e ouçam a história da pessoa presa. Eles disseram que a falta deste contato direto pode ter contribuído para um aumento no uso da prisão preventiva em toda a região.
Um estudo de 2020 publicado pelo Center for Court Innovation e pela National Legal Aid & Defender Association constatou que o uso da tecnologia de vídeo prejudica gravemente a capacidade de um magistrado de ler a linguagem corporal e os sinais não verbais. Por exemplo, os gestos e o contato visual podem não ser visíveis devido ao ângulo da câmara, a falhas no vídeo, ou à baixa qualidade da conexão.
O acesso à tecnologia também pode constituir um verdadeiro obstáculo ao acesso à justiça para muitas pessoas na região. De acordo com um estudo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), um terço da população da América Latina tem acesso limitado ou nenhum acesso à tecnologia digital. Isto pode ter graves implicações para as pessoas privadas de liberdade.
No Paraguai, o Mecanismo Nacional de Prevenção informou que não é raro que pessoas privadas de liberdade participem de audiências em um corredor barulhento dos presídios, com um telefone celular na mão, tentando desesperadamente ouvir como seu futuro será decidido, muitas vezes sem sequer conseguir ver o magistrado que conduz a audiência.
"É também o caso em alguns países onde os guardas ou outros agentes de segurança literalmente emprestam os seus celulares pessoais às pessoas presas para que estas possam ter acesso às audiências", disse a Sra. Dias. "Para garantir o acesso adequado à justiça para todas as pessoas privadas de liberdade, é vital que as audiências de custódia sejam realizadas com o comparecimento físico".
Sylvia Dias ressaltou ainda que a pandemia já não deveria ser um obstáculo à realização de audiências de custódia presenciais. A APT produziu uma série de vídeos em 2020 nos quais documentou práticas de biossegurança implementadas nos tribunais de Roraima e Mato Grosso do Sul.