Há algumas semanas, quando participava de uma audiência pública na Câmara dos Deputados, tive uma clara sensação de déjà vu. Minha mente me levou há nove anos atrás, quando participei de um evento semelhante, no mesmo local (embora desta vez minha presença fosse 'virtual'), para discutir e defender o mesmo tema: a implementação de um sistema nacional para prevenir a tortura no país.
Entretanto, apesar das muitas semelhanças, estas duas experiências foram fundamentalmente distintas. As expectativas eram diferentes, os objetivos eram diferentes e os sentimentos compartilhados pelos participantes também eram diferentes.
Nove anos atrás, buscávamos impulsionar avanços. Nosso objetivo era promover o avanço da proteção e dos mecanismos de proteção dos direitos humanos no país. A esperança e o entusiasmo prevaleciam.
Hoje, lutamos contra retrocessos e reveses a políticas de direitos humanos já estabelecidas ( e que pareciam já consolidadas). Frustrações emergem. Por outro lado, também emergem sentimentos de resiliência e persistência.
Em 2012, comparecemos perante o Congresso Nacional para instar os parlamentares a aprovarem uma legislação que demonstrasse seu compromisso com a proibição absoluta da tortura e os maus-tratos e com a concretização dos preceitos do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura no país.
Na semana passada, estivemos diante da Câmara dos Deputados para defender uma política de Estado, promulgada por legislação federal, que foi unilateralmente desmantelada por um ato do Executivo federal. Estivemos lá para resistir ao retrocesso de direitos e para defender a manutenção de um órgão estabelecido e eficaz para a prevenção à tortura.
Em junho de 2019, o governo federal emitiu um decreto presidencial que retirou fundos para o funcionamento do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). O Decreto 9.831/2019 determinou que os membros do MNPCT deixariam de ser remunerados e, exerceriam suas funções voluntariamente; e exonerou sumariamente todos os peritos e peritas que compõem o órgão.
Todas essas medidas visam desmantelar o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, uma política de Estado promulgada pela Lei 12.847/2013, que criou órgãos nacionais e estaduais anti-tortura (comitês e mecanismos nacionais e estaduais para prevenir a tortura).
Esta política contribuiu para promover maior transparência e controle dos locais de privação de liberdade, e também propiciou o envolvimento ativo da vibrante sociedade civil brasileira no desenvolvimento de políticas e programas para prevenir a tortura e os maus-tratos.
Contudo, o Decreto 9.831/2019 restringiu a autonomia da sociedade civil para eleger seus representantes nos debates de políticas públicas e colocou nas mãos do Presidente da República plenos poderes para escolher as organizações que compõem o Comitê Nacional para a Prevenção da Tortura (CNPCT).
Desde sua publicação, uma ampla coalizão de organizações nacionais e internacionais da sociedade civil vem denunciado o decreto através de comunicados públicos, diálogo com autoridades do Estado, envio de informação aos órgãos internacionais de direitos humanos e ações judiciais.
Além disso, o Subcomitê de Prevenção da Tortura da ONU (SPT), em uma iniciativa sem precedentes, publicou um parecer analisando a compatibilidade do decreto à luz dos preceitos do Protocolo Facultativo. Em sua manifestação, o SPT declara que as reformas trazidas pelo Decreto nº 9.831 "não estão em conformidade com as obrigações do Brasil previstas no Protocolo Facultativo" e "enfraquecem gravemente a política de prevenção à tortura do Brasil". O SPT também pediu ao Estado brasileiro que revogue o decreto para assegurar que o sistema brasileiro de prevenção à tortura funcione de forma eficiente e independente.
A justiça proporcionou um remédio temporário. Como resposta a uma Ação Civil Pública ajuizada pela Defensoria Pública da União, foi proferida uma decisão liminar suspendendo provisoriamente os efeitos do decreto. Esta decisão cautelar é o alicerce que sustenta hoje a manutenção do Mecanismo Nacional de Prevenção à Tortura do Brasil (MNPCT). Se a decisão for derrubada, este órgão anti-tortura deixará imediatamente de existir.
Desde sua criação em 2015, o MNPCT inspecionou mais de 46 hospitais psiquiátricos, 68 presídios, 34 unidades socioeducativas, bem como 6 instituições de longa permanência para pessoas idosas e 31 comunidades terapêuticas, em 25 unidades federativas do país. Com base em seu monitoramento independente, o MNPCT já emitiu uma pluralidade de recomendações às autoridades dos poderes Legislativo, Executivo, e Judiciário. Além disso, o MNPCT tem monitorado as respostas do Estado aos massacres violentos ocorridos no Amazonas, Rio Grande doNortee Roraima, denunciado a tortura perpetrada pela Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP), e vem empreendendo esforços para documentar as violações dos direitos humanos e se engajar no diálogo para implementar medidas preventivas.
Acima de tudo, o MNPCT traz à luz informações sobre as condições de detenção em todos os cantos do país e as coloca à disposição do público. A publicação de seus relatórios de monitoramento demonstra que a opacidade não pode, e não deve mais prevalecer nas instituições fechadas.
Durante a pandemia da COVID-19, os mecanismos de prevenção nacionais e estaduais desempenharam um papel fundamental para manter a supervisão da situação dentro dos espaços de privação de liberdade, em um momento de ausência de informações oficiais confiáveis. Em todo o país, as visitas de familiares foram suspensas por vários meses. Em alguns estados, essa restrição de acesso se mantém até os dias atuais. Os mecanismos preventivos têm sido um dos poucos órgãos de fiscalização que continuaram inspecionando os locais de detenção durante a pandemia e se colocaram como um aliado chave para os e as familiares de pessoas privadas de liberdade.
No 26 de junho, Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura, organizações da sociedade civil e instituições públicas se uniram em um vídeo inspirador. Nosso objetivo foi chamar a atenção da sociedade sobre a realidade permanente da tortura no Brasil, estar ao lado daqueles e daquelas que estão em maior risco - jovens negros e minorias sexuais e de gênero - e instar o fortalecimento de um sistema nacional mais forte para prevenir e combater a tortura no país. Como tantas vozes afirmam no vídeo, o estabelecimento do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura em 2013 foi o resultado de ações de advocacy potentes e articuladas lideradas por organizações da sociedade civil. Trata-se de uma política de Estado que pertence a todos os brasileiros e brasileiras.
Nossa resistência hoje deve ser igualmente articulada e firme. Num momento em que o compromisso de erradicar a tortura enfrenta sua maior ameaça, continuaremos a levantar nossa voz e a lembrar o Estado brasileiro da proibição absoluta da tortura. Continuaremos defendendo um Sistema Nacional de Prevenção à Tortura que defenda os direitos e a dignidade de todas as pessoas privadas de liberdade. E continuaremos recordando ao legislativo e ao judiciário de seu dever de proteger e defender uma política que deve ir além da influência do governo da vez.