Autor: Alexis Comninos
Restrições de viagem, cancelamentos de grandes eventos, quarentenas, cidades inteiras, regiões, e países bloqueando suas fronteiras - aqui estão algumas das medidas restritivas que governos de todo o mundo adotaram para combater a propagação mortal do novo Coronavírus (COVID-19). Tais medidas também não pouparam as pessoas privadas de liberdade - aliás, longe disso.
Algumas autoridades suspenderam, por exemplo, os direitos das pessoas presas de receber visitas de familiares, ou de realizar qualquer atividade em contato com pessoas externas.
No Irã, num movimento para reduzir o risco de contaminação, as autoridades tomaram a atípica medida de libertar 70.000 pessoas presas - levantando assim algumas questões sérias e de caráter mais abrangente sobre medidas alternativas não privativas de liberdade.
Tais situações de emergência colocam as coisas em perspectiva. Diante da tragédia, tendemos a desafiar normas e princípios que consideramos fundamentais; também tendemos a questionar os méritos de nossos métodos e práticas estabelecidas. Embora tais desafios e questões possam dar origem a reflexões e avanços bem-vindos, devemos ter cuidado para não cair no relativismo nem comprometer os direitos humanos.
Parece lógico - até louvável - que as autoridades tomem medidas decisivas para evitar a entrada do Coronavírus nos espaços de privação de liberdade. Muitos elementos nos levam a crer que um possível surto teria consequências devastadoras. Na verdade, sabemos que as pessoas privadas de liberdade são de fato mais vulneráveis à contaminação viral. O Coronavírus não é exceção. Este vírus, como muitos outros, pode se espalhar rapidamente em espaços fechados. Particularmente quando tais espaços estão lotados, ou superlotados. Na China, as autoridades já reportaram mais de 500 casos nas suas prisões. Além disso, condições crônicas e infecções como diabetes, hepatite, HIV ou tuberculose são mais prevalentes no contexto prisional do que fora dele. Tem sido documentado que tais condições pré-existentes aumentam consideravelmente o risco de morte se ocorrer uma infecção pelo Coronavírus.
Na Itália, as autoridades tomaram medidas firmes de "bloqueio" aplicáveis a todo o país, assim como medidas restritivas específicas para o sistema penitenciário. Tais medidas incluem a suspensão temporária de todas as visitas de familiares e atividades com pessoas externas, tais como atividades esportivas ou de formação ou capacitação profissional. Seguindo demandas de grupos de direitos humanos, algumas dessas medidas foram mitigadas por arranjos alternativos, tais como extensão de acesso à chamadas telefônicas ampliadas (10 a 20 minutos diários), o uso de ligações por videoconferência e até mesmo a prisão domiciliar em determinadas circunstâncias. Apesar desses esforços, os protestos dentro das prisões, provocados pelo anúncio das medidas restritivas, já levaram à morte de várias pessoas presas. Um representante do Mecanismo Nacional de Prevenção da Itália (MNP) destacou a falta de comunicação efetiva sobre a natureza e o alcance das medidas tomadas, e apelou pelo apaziguamento.
Nenhuma medida restritiva pode ignorar os direitos humanos das pessoas privadas de liberdade. Seja no contexto particular do Coronavírus, ou na gestão e contenção de outras doenças infecciosas, todas essas medidas devem, sempre, seguir os princípios de Proporcionalidade, Legalidade, Responsabilidade, Necessidade e Não-discriminação (PLANN) (Ver Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura, 21º Relatório Geral (2011), §55). As autoridades responsáveis pela prisão e privação de liberdade devem (1) defender os direitos e proteger a dignidade das pessoas privadas de liberdade, ao mesmo tempo em que (2) as protegem, a elas e aos outros, da contaminação. Embora algumas restrições aos regimes fechados possam ser justificadas, nenhum destes dois objetivos pode ser comprometido.
O objetivo deste artigo não é avaliar a aceitabilidade da resposta das autoridades ao surto do Coronavírus. Ao contrário, é sim levantar algumas considerações essenciais frequentemente relegadas para segundo plano em tais cenários de pânico. Estados de emergência exigem medidas excepcionais – e às vezes criativas. No entanto, elas não podem servir para justificar todo tipo de restrições.
O isolamento médico prolongado tende a gerar sentimentos de raiva, medo, culpa, depressão e suicídio nos pacientes (Ver relatório do Relator Especial sobre o direito de todos ao gozo do mais alto padrão atingível de saúde física e mental, A/HRC/38/36 (2018), §91). No contexto da prisão, tais sentimentos são comumente agravados.
Em situações de privação de liberdade, o direito à vida privada e familiar pode estar sujeito a certas restrições. No entanto, em Messina v. Itália (§61), o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos declarou claramente que as autoridades prisionais devem " auxiliar [as pessoas presas] a manter contato com [sua] família próxima", pois “é uma parte essencial do direito do preso/a o respeito pela vida familiar". Com isto em mente, é razoável esperar das autoridades prisionais que, mesmo em situações de emergência de saúde pública, tomem as medidas necessárias para compensar o efeito segregador da prisão de forma pró-ativa e propositiva, inclusive facilitando o contato ou a comunicação com a família.
As circunstâncias atuais também afetaram as atividades de monitoramento e inspeção. Cientes do princípio de não causar danos, o Subcomitê de Prevenção à Tortura da ONU (SPT) e alguns mecanismos nacionais de prevenção à tortura (MNPs) suspenderam as suas visitas, enquanto outros MNPs solicitaram o monitoramento das dependências de quarentena. Estes órgãos têm a atribuição de monitorar o que está acontecendo nos locais de privação de liberdade, e estão, portanto, em uma posição privilegiada para identificar situações de risco e prevenir abusos. Em situações de emergência, como vimos com o MNP italiano, tais entidades têm um papel fundamental a desempenhar na avaliação e recomendação de medidas para prevenir e conter o vírus, visando ao mesmo tempo o respeito aos direitos humanos e à dignidade.
Esta crise de saúde pública já exerce, e inegavelmente continuará a exercer, uma enorme pressão sobre aqueles que administram os espaços de privação de liberdade. Estas circunstâncias excepcionais levantam uma série de questões relevantes em relação às restrições aceitáveis e excessivas dos regimes prisionais, bem como referentes ao gozo efetivo do direito à saúde quando em situação de encarceramento.
Algumas autoridades estão priorizando a adoção de medidas alternativas à privação de liberdade, para evitar maior contaminação. Este avanço inegavelmente positivo tem o potencial de demonstrar os méritos de tal abordagem em circunstâncias menos extremas. O que deve ficar claro, é que mesmo sob tamanha pressão, as autoridades não podem deixar que o medo de contágio ponha em risco os direitos humanos das pessoas privadas de liberdade.
Foto: Controlador Geral dos Locais de Privação de Liberdade (Contrôleur général des lieux de privation de liberté, CGLPL)